Aquíferos brasileiros (Foto Internet)

Sustentabilidade e ESG

Crise climática ameaça a recarga de aquíferos brasileiros

Impactos subterrâneos da mudança do clima exigem atenção urgente

Um estudo conduzido por cientistas do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelou que a crise climática global pode comprometer de forma significativa a recarga natural dos aquíferos brasileiros. A pesquisa analisou diferentes cenários climáticos e apontou que a oferta de águas subterrâneas tende a diminuir em praticamente todo o território nacional até o final do século.

Águas subterrâneas são aquelas que se acumulam abaixo da superfície, em formações geológicas chamadas aquíferos. Elas infiltram-se lentamente no solo após as chuvas e abastecem poços, nascentes, rios e ecossistemas. Estima-se que cerca de 112 milhões de brasileiros, ou 56% da população, dependam total ou parcialmente dessa fonte para abastecimento.

Cenários e impactos previstos

O estudo utilizou um modelo de balanço hídrico baseado em geoprocessamento e projeções climáticas do Coupled Model Intercomparison Project Phase 6 (CMIP6) para avaliar alterações de temperatura, precipitação, escoamento superficial e recarga de aquíferos entre 2025 e 2100. O CMIP6 reúne dados de centros de pesquisa de todo o mundo e é o modelo mais recente do Programa Mundial de Pesquisa Climática (WCRP).

A pesquisa analisou dois cenários de emissões de gases de efeito estufa, um moderado e outro pessimista. “O que constatamos foi a possibilidade de uma diminuição drástica da recarga dos aquíferos do país, especialmente nas regiões Sudeste e Sul, que vão ficar mais secas segundo praticamente todos os modelos climáticos analisados”, afirmou Ricardo Hirata, professor titular do IGc-USP e primeiro autor do artigo.

Os resultados indicam que o país deve registrar aumento de temperatura entre 1,02 °C e 3,66 °C ao longo do século, dependendo do cenário, e que a distribuição das chuvas tende a se tornar mais desigual. A região Norte e parte do litoral Leste devem ter redução da precipitação média anual, enquanto o Sul e áreas do Nordeste, como Ceará, Piauí e Maranhão, podem registrar aumentos pontuais.

“Mesmo em regiões como o Sudeste, onde a quantidade total de chuvas não deverá variar muito, teremos uma mudança de regime, com verões mais chuvosos e períodos secos mais longos. Chuvas muito intensas e concentradas promovem o escoamento superficial e podem provocar inundações, mas não favorecem a infiltração da água no solo. E, sem infiltração, não há recarga”, explicou Hirata.

O pesquisador acrescentou que mesmo quando a água penetra no solo, o processo para atingir o aquífero pode levar meses. “Em vários estudos nossos, vimos que a água leva dois ou três meses para atravessar 10 a 15 metros de solo e chegar ao lençol freático. Se a chuva for intensa demais e durar pouco, essa água não chega lá”, pontuou.

A recarga subterrânea pode reduzir até 666 milímetros por ano nas regiões mais afetadas. O Sistema Aquífero Bauru-Caiuá, no Centro-Oeste, incluindo partes de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, deve sofrer redução de 27,94% no volume recarregado. Outros aquíferos importantes, como Guarani, Furnas, Serra Geral, Bambuí Cárstico e Parecis, também devem ter perdas significativas.

Desatenção para o problema

Apesar de sua importância estratégica, os aquíferos têm recebido pouca atenção nas políticas públicas. “A água subterrânea continua sendo esquecida na discussão sobre mudanças climáticas. Quando se fala do clima, fala-se de rios, de vegetação, de agricultura. Mas os aquíferos não entram na agenda”, disse Hirata.

Ele lembrou que mais da metade dos municípios brasileiros depende de água subterrânea. “Temos uma gigantesca reserva de água que é resiliente a variações de recarga. Mesmo em anos de estiagem, o aquífero continua fornecendo água, porque seu armazenamento é muito grande. Foi o que ocorreu na grande estiagem de 2014-2016. As cidades abastecidas por água superficial foram duas vezes mais atingidas pela crise hídrica do que aquelas abastecidas exclusivamente por água subterrânea”, afirmou.

No Brasil, existem cerca de 3 milhões de poços tubulares perfurados e outros 2 milhões de poços escavados, que extraem entre 550 e 600 metros cúbicos de água por segundo. Destes, 80% a 90% são usados para agricultura, indústria, serviços e abastecimento residencial complementar.

Um exemplo é São Paulo. “Apenas 1% do abastecimento público vem de aquíferos. Mas há cerca de 13 mil poços privados na região metropolitana que respondem por 11 metros cúbicos por segundo. Durante a crise hídrica, isso chegou a suprir 25% da demanda”, afirmou Hirata. Ele destacou que, apesar de parecer contraditório, o uso privado de poços ajuda a garantir água da rede para a população mais vulnerável. “Pode parecer contraditório, mas, quando os ricos usam água de poços, sobra mais água da rede para os mais pobres”, explicou.

Soluções para a recarga de aquíferos

O estudo também aponta estratégias para enfrentar o problema, como a recarga manejada de aquíferos (MAR), que utiliza técnicas para favorecer a infiltração de água da chuva ou de esgoto tratado. A MAR pode incluir desde bacias de infiltração e pequenas barragens até sistemas de injeção direta no aquífero, como já ocorre em Madri, na Espanha.

“É possível captar a água de chuva ou mesmo o esgoto tratado e conduzir isso a sistemas de infiltração planejados. O solo funciona como um super-reator biogeoquímico, capaz de purificar essa água durante o trajeto até o aquífero”, explicou Hirata.

Em cidades grandes, parte da recarga já ocorre de forma involuntária. “Estudos com isótopos mostram que cerca de 50% da recarga na região central vem de vazamentos nas redes de água e esgoto. Isso mostra que a ocupação urbana também pode afetar positivamente os processos subterrâneos”, afirmou o pesquisador.

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