Em meio à destruição causada pela explosão que abalou Beirute em 2020, uma joia da história da arte foi resgatada do esquecimento. A pintura “Hércules e Ônfale”, uma monumental obra a óleo do século XVII, foi encontrada danificada, coberta de entulhos e com rasgos profundos provocados por estilhaços de vidro. Após mais de três anos de um delicado processo de restauração, a obra ressurge e passa a ser exibida no Getty Center, em Los Angeles.
A tela, datada da década de 1630, foi enfim corretamente atribuída à pintora italiana Artemisia Gentileschi, uma das raríssimas mulheres a alcançar destaque artístico no período barroco. A exposição “As Mulheres Fortes de Artemisia: Resgatando uma Obra-Prima” marca a primeira exibição pública da obra, que esteve restrita a coleções particulares durante quatro séculos.
A composição retrata o herói mitológico Hércules, submetido à escravidão por Ônfale, rainha da Lídia. Gentileschi transforma a cena em um jogo de papéis de gênero invertidos, mostrando Hércules fiando lã com um fuso, em uma atmosfera carregada de sensualidade e tensão. Os corpos dos protagonistas se aproximam, envoltos em tecidos luxuosos e gestos cuidadosamente desenhados, como é característico da artista.
Por décadas, a pintura esteve pendurada no Palácio Sursock, uma mansão do século XIX pertencente à influente família Sursock. A explosão destruiu parte da residência e causou ferimentos fatais à matriarca Yvonne Sursock Cochrane, de 98 anos. A obra de arte, pendurada diante de uma janela, foi gravemente atingida. “Foi realmente grave. É provavelmente o pior dano que já vi”, declarou Ulrich Birkmaier, conservador sênior do Getty Museum, em entrevista à CNN.
Além do impacto físico, a obra já apresentava desgaste anterior. Havia rachaduras, empenamento e perda de tinta causados pela umidade, além de repinturas antigas que ocultavam a intenção original da artista. Quando Birkmaier examinou a pintura um ano após a explosão, recolheu detritos acumulados atrás da tela, na esperança de recuperar minúsculos fragmentos originais que pudessem ser reutilizados no processo de restauração.
A verdadeira autoria da pintura só ganhou reconhecimento depois da tragédia. Gregory Buchakjian, historiador da arte libanês, havia associado a tela a Gentileschi na década de 1990 enquanto fazia sua pesquisa de pós-graduação sobre a coleção Sursock. No entanto, sua descoberta só veio a público em 2020, após um artigo publicado na revista Apollo. A comunidade acadêmica passou então a aceitar sua tese e reconhecer a obra como um autêntico trabalho da artista italiana.
Artemisia Gentileschi foi uma figura notável de seu tempo. Filha do pintor Orazio Gentileschi, treinou com o pai, estudou os mestres venezianos, absorveu influências de Caravaggio e Guercino, e viajou pela Europa sendo comissionada por grandes patronos, como a família Medici, o rei Filipe IV da Espanha e o rei Carlos I da Inglaterra. Após sua morte em 1653, seu nome foi praticamente esquecido, como tantas mulheres artistas da época. “Ela foi muito, muito famosa em sua época, mas quase completamente esquecida nos séculos seguintes, o que é verdade para muitos pintores barrocos, mas para as mulheres, é claro, particularmente”, observou Birkmaier.
Nos anos 1970, o movimento feminista reavivou o interesse por sua obra, impulsionando pesquisas e descobertas. No entanto, poucos estudos técnicos haviam sido realizados. O trabalho do Getty lança nova luz sobre sua técnica e revela ajustes na composição feitos por Gentileschi, como a mudança no olhar e na cabeça de Hércules para intensificar a emoção da cena. “Estamos gradualmente construindo um melhor conhecimento de sua maneira de pintar”, explicou Davide Gasparotto, curador sênior de pinturas do museu.
A restauração envolveu tecnologias de ponta e colaboração artística. Para reconstruir a parte mais danificada, o rosto de Hércules, Birkmaier contou com a ajuda de Federico Castelluccio, ator de “The Sopranos” e colecionador de arte barroca. “Ele pintou a cabeça de Hércules para mim e sugeriu como o olho que faltava deveria ser”, contou o conservador. “E então baseei minha reconstrução nisso, e foi muito útil.”
Segundo Birkmaier, restaurar uma pintura de quatro séculos não significa deixá-la como nova. “Você sempre verá algumas cicatrizes do dano”, afirmou. A ideia é preservar a passagem do tempo e respeitar a história da obra, mesmo marcada por tragédias. “Você tem essa pintura em pedaços, e tudo o que você vê é o dano e o verniz descolorido e a restauração antiga e os grandes buracos, e então, pouco a pouco, enquanto você trabalha nela… a imagem ressurge”, relembrou. “É um processo de descoberta realmente interessante. Eu queria fazer justiça a ela.”
Características típicas da obra de Gentileschi estão presentes nesta pintura, como o uso dramático de tecidos, o cuidado nos detalhes das joias e os gestos femininos sutis que se repetem em outras telas. “É muito poético a maneira como ela vira, ela vira a cabeça (de Ônfale), esse olhar ereto”, apontou Birkmaier. A mesma inclinação de cabeça aparece em outras obras da artista, como “Susana e os Anciãos”, recentemente redescoberta na Royal Collection do Reino Unido após passar um século armazenada como uma peça sem importância.
Outra obra atribuída a Gentileschi, “Davi com a cabeça de Golias”, será destaque em um leilão da Sotheby’s em julho. Ainda que nem todas as atribuições sejam definitivas, Gasparotto acredita que outras obras da pintora podem surgir em coleções particulares ou museus nos próximos anos. “Há definitivamente muito espaço para descobertas”, afirmou.
Hoje, graças à persistência de estudiosos, à tecnologia de restauração e à força simbólica de uma artista que desafiou seu tempo, “Hércules e Ônfale” reaparece como um testemunho da resiliência não apenas da arte, mas da memória feminina na história cultural da humanidade.